Ainda Estou Aqui
Ainda Estou Aqui fez um circuito completo de festivais, passando por eventos de cinema em cidades como Veneza, Toronto, Nova Iorque, entre outras. Nessa trajetória, ganhou vários prêmios nas categorias de direção, roteiro, atuação e melhor filme. Nas últimas décadas, o cinema brasileiro, apesar de ser reconhecido internacionalmente, teve muita dificuldade para conquistar acordos de distribuição internacional como este longa conseguiu. Desde já, fica a esperança de que mais empresas estejam dispostas a seguir o exemplo da Sony Pictures e possam levar nossas produções nacionais para um público maior.
O filme é uma adaptação cinematográfica do livro autobiográfico de Marcelo Rubens Paiva, que narra a emocionante trajetória de sua mãe, forçada a se reinventar quando a vida de sua família é destruída por um ato de violência arbitrária durante o regime da ditadura militar no Brasil, em 1971.
O design de produção e figurino são impecáveis e nos transportam para o Rio de Janeiro da década de 60. Além disso, a forma como o filme decide retratar memórias felizes, através do filtro de uma câmera utilizado nos momentos certos, ajuda a criar a ideia de saudades e memórias de tempos felizes. Também temos um roteiro que evita clichês e momentos altamente expositivos, comuns quando o criador tem dificuldade em apresentar o contexto histórico de histórias reais de forma natural na narrativa.
O diretor Walter Salles consegue retratar muito bem um ambiente acolhedor na casa da família Paiva, onde encontramos muita união e um pai presente. Na maioria das cenas do longa, é como se estivéssemos vendo tudo pela ótica de alguém que também está na casa, e quando algo ruim acontece, o golpe emocional é certeiro. É uma história que envolve o espectador no contexto familiar desde o começo e que explora com muita delicadeza o sofrimento ao qual essa família foi submetida.
A forma mais comum de trazer o medo e o suspense no cinema é fazendo uso da violência explícita, e com a ditadura militar brasileira não faltam relatos de práticas de tortura que seriam uma forma muito mais simples de trazer o histórico violento do regime para a tela. Porém, aqui o medo e a desesperança vêm de outra forma. A falta de informações, o medo de discutir o assunto, e a constante vigilância dos agentes do regime, tudo ajuda a criar um ambiente onde a liberdade dessa família outrora feliz parece cada vez mais limitada, cerceada pela dúvida, solidão, silêncio e opressão.
No centro de toda a trama, encontramos uma atuação impactante de Fernanda Torres. No papel de Eunice Paiva, durante a ditadura, seu marido e ex-deputado é levado de casa e nunca mais é visto. A tristeza reprimida, o olhar muitas vezes vazio, perdido. Mesmo com o passar dos anos, parece que uma parte de Eunice foi levada embora junto com seu marido, deixando um vazio que permanece. Apesar do sofrimento, agora ela precisa cuidar e proteger seus filhos sozinha. Embora no audiovisual seja comum que personagens mais contidos eventualmente tenham um ‘momento de explosão’, onde os atores costumam ter mais espaço para se destacar, aqui Fernanda precisa ser uma mãe contida, que não pode correr riscos e com a necessidade de proteger o que sobrou de sua família, agora fragmentada.
Selton Mello, interpretando Rubens Paiva, tem pouco tempo de tela, mas aproveita cada momento para trazer o máximo de carisma a todas as suas cenas. Quando eventualmente voltamos para uma casa onde ele não está mais presente, sua ausência é sentida. À medida que a história passa, a única forma de aceitar que ele não irá voltar é deixar a casa onde a família morava.
Apesar de breve, a atuação de Fernanda Montenegro não deve ser vista como uma nota de rodapé. Interpretando uma Eunice Paiva mais velha, o olhar perdido de uma mulher que luta contra o Alzheimer, em um filme onde o foco está nas memórias da personagem, traz uma melancolia que acaba ficando conosco após a rolagem dos créditos finais.
Ainda Estou Aqui conta uma história real, com uma família real, e que aconteceu não faz muito tempo. Não existem justificativas para o que ocorreu e não existem motivos bons o suficiente para defender o que foi feito. Foram muitos Paivas desaparecidos, muitas famílias aflitas, e é essencial que não nos esqueçamos da nossa história.
O longa perde um pouco do seu ritmo após passar dos anos 70 para os anos 90. É um caso comum em filmes biográficos. A história de vida de uma pessoa não é uma narrativa cinematográfica feita para ser contada em um espaço de 140 minutos, com uma estrutura de arcos emocionais bem definida. A necessidade de honrar a vida e o legado de alguém precisa se sobrepor à estrutura do roteiro, mesmo que atrapalhe o fluxo da narrativa.
Podemos definir Ainda Estou Aqui como um poderoso lembrete de um passado que não deve ser esquecido, e um grande exemplo do poder da arte de não apenas nos entreter, mas também servir como uma ferramenta de aprendizado e reflexão. Independente do reconhecimento internacional e da possível vitória do primeiro Oscar para uma produção brasileira, já se consagrou como um dos capítulos mais importantes do cinema brasileiro no século 21.
Nota: 9/10
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